A vacina Calixcoca, desenvolvida pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), está avançando para uma possível aprovação no tratamento de dependências químicas. A pesquisa, que recebeu o Prêmio Euro de Inovação em Saúde no início de outubro, obteve um investimento de 500 mil euros. O pesquisador e coordenador da pesquisa, Frederico Garcia, afirma que o estudo aguarda a liberação dos investimentos já concedidos para registrar o medicamento e iniciar os testes clínicos.
“A primeira vacina antidrogas da América Latina está próxima. Não se trata de uma panaceia, nem de uma solução definitiva. No entanto, em um cenário sem medicamentos registrados, ela demonstrou eficácia nos estudos e pode ser útil para pessoas que sofrem de dependência”, comentou o pesquisador.
A expectativa é de que o governo de Minas Gerais conceda um recurso de R$ 10 milhões para dar continuidade ao projeto. Garcia explica que esse valor será utilizado para adequar o lote às regulamentações da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e para testar a vacina em seres humanos.
A pesquisa teve início em 2015 e apresentou resultados positivos nos testes pré-clínicos realizados em ratos. Observou-se a produção de anticorpos que impedem a entrada de cocaína no sistema nervoso dos roedores com o uso da substância.
Garcia menciona que, antes do início da pesquisa, já havia artigos internacionais revisados sobre vacinas antidrogas. No entanto, a principal motivação para iniciar a pesquisa foi uma norma publicada em 2013 pelo Ministério Público de Minas Gerais. Esta norma estipulava que os médicos obstetras deveriam denunciar mulheres grávidas que faziam uso de drogas ao Ministério Público para que os bebês fossem retirados de seus cuidados.
O médico recorda: “De repente, no ambulatório de dependência química que eu coordeno, encontrei algumas mulheres pedindo ajuda: ‘Por favor, ajude-me no tratamento, não quero ficar sem meu filho'”.
Antes do desenvolvimento da vacina, Garcia juntou-se a Angelo de Fátima, um professor da UFMG, para criar uma nova substância chamada UFMG-V4N2. “Nós modificamos a cocaína para vinculá-la a essa plataforma vacinal, denominada cálix, permitindo o uso dela como vacina.”
Esta abordagem é inovadora em termos de pesquisa, pois é uma molécula completamente sintética, não dependendo de fungos ou bactérias para produção, sendo fabricada em laboratório. A maioria das vacinas é baseada em modelos biológicos, mas esta solução difere, conforme explicou o pesquisador.
Ele também apontou que outra vantagem dessa abordagem, especialmente em relação ao armazenamento da vacina e à logística de transporte, é certamente a redução dos custos de produção devido à ausência de materiais biológicos.
Um dos maiores problemas de saúde pública é a dependência química. A regulamentação das cracolândias em grandes centros urbanos é um exemplo disso. Cerca de 400 milhões de pessoas receberam tratamento para transtornos mentais e comportamentais relacionados ao uso de substâncias químicas em 2021, dos quais quase 32 mil estavam associados ao uso de cocaína, de acordo com dados do Sistema Único de Saúde (SUS).
O consumo global de cocaína aumentou após a pandemia, de acordo com o relatório das Nações Unidas divulgado este ano. Em 2021, aproximadamente 22 milhões de pessoas adquiriram drogas. Na América do Sul, que é a principal fornecedora mundial de entorpecentes, produtores geraram 2,3 mil toneladas de cocaína pura no mesmo ano. Os principais destinos são a América do Norte e a Europa, mas a ONU está observando um avanço preocupante na África e na Ásia. Estimativas não atualizadas indicam que o Brasil e os Estados Unidos estão entre os países com maior consumo de crack.
Milhões de pessoas enfrentam a dependência química associada à cocaína e ao crack, conforme apontado por Leonardo Rodrigues, médico psiquiatra do Instituto Meraki de Saúde Mental. Ele enfatizou a importância de encontrar soluções, afirmando que a criação de uma vacina terapêutica é um avanço significativo nesse contexto.
O tratamento de dependências químicas envolve várias etapas, incluindo desintoxicação e reabilitação para tratar a abstinência. Os profissionais administram certos medicamentos para reduzir esses sintomas e ajudar o paciente a manter-se abstêmio. A dependência química também trata problemas como insônia, depressão e ansiedade. Rodrigues observa que a vacina desempenhará um papel crucial no aumento da taxa de resposta.
Ele explica como a Calixcoca auxilia no tratamento, interrompendo o ciclo vicioso durante o processo de recuperação do paciente. Ao fornecer a vacina, o objetivo é impedir que a droga ultrapasse a barreira hematoencefálica. Isso evita o efeito psicotrópico da droga, interrompendo o funcionamento do sistema de recompensa e contribuindo para a recuperação do paciente.
O futuro da pesquisa depende de vários desenvolvimentos. É necessário concluir etapas menores para o registro, e quando a Anvisa conceder a autorização, os estudos de fase 1 (com humanos) serão iniciados. Estes estudos podem confirmar duas coisas: primeiro, se a vacina gera anticorpos em seres humanos; segundo, se há efeitos colaterais que possam impedir sua continuidade.
Além disso, é importante ressaltar que os testes em humanos somente serão realizados com a aprovação da agência reguladora e que o estudo inicial deverá ser conduzido dentro da universidade. “É crucial que o ‘Primeiro em Humanos’, a primeira aplicação em humanos, ocorra aqui, pois isso é significativo para a cultura da universidade e para a cultura do país, no sentido de que a gente precisa começar a produzir produtos de alto valor agregado em vez de ficar só exportando”.
A primeira fase de estudos deve começar em até dois anos. Além disso, os pesquisadores esperam que a vacina se torne um produto final nos próximos três ou quatro anos. Portanto a dependência química é uma condição que limita a autonomia do indivíduo, impedindo-o de tomar a decisão de usar ou não drogas. O pesquisador conclui que qualquer remédio que ajude nesse processo terá um impacto significativo nessas pessoas e nas famílias delas.